Por:
Marilene Chauí.
Quando se afirma que os
gregos e romanos inventaram a política, o que se diz é que desfizeram aquelas
características da autoridade e do poder. Embora, no começo, gregos e romanos
tivessem conhecido a organização econômico-social de tipo despótico ou patriarcal,
um conjunto de medidas foram tomadas pelos primeiros dirigentes – os
legisladores – de modo a impedir a concentração dos poderes e da autoridade nas
mãos de um rei, senhor da terra, da justiça e das armas, representante da
divindade.
Apesar das diferenças
históricas na formação da Grécia e de Roma, há três aspectos comuns a ambas e
decisivos para a invenção da política: o primeiro,
é a forma da propriedade da terra; o segundo,
o fenômeno da urbanização; e o terceiro,
o modo de divisão territorial das cidades. Como a propriedade da terra não
pertencia à aldeia nem ao rei, mas às famílias independentes, e como as guerras
ampliavam o contingente de escravos, formasse na Grécia e em Roma uma camada
pobre de camponeses que migraram para as aldeias, ali se estabeleceram como
artesãos e comerciantes, prosperaram, fizeram, das aldeias, cidades, passaram a
disputar o direito ao poder com as grandes famílias agrárias.
A urbanização significou
uma complexa rede de relações econômicas e sociais que colocava em confronto
não só proprietários agrários, de um lado, e artesãos e comerciantes, de outro,
mas também a massa de assalariados da população urbana, os não-proprietários,
genericamente chamados de “os pobres”. A luta de classes incluía, assim,
lutas entre os ricos e lutas entre ricos e pobres. Tais lutas eram decorrentes
do fato de que todos os indivíduos participavam das guerras externas, tanto
para a expansão territorial, quanto para a defesa de sua cidade, formando as
milícias dos nativos da cidade. Essa participação militar fazia com que todos
se julgassem no direito, de algum modo, de intervir nas decisões econômicas e
legais das cidades. A luta das classes pedia uma solução. Essa solução foi a política. Finalmente, os primeiros chefes
políticos ou legisladores introduziram uma divisão territorial das cidades que
visava a diminuir o poderio das famílias ricas agrárias, dos artesãos e
comerciantes urbanos ricos e à satisfazer a reivindicação dos camponeses pobres
e dos artesãos e assalariados urbanos pobres.
Em Atenas, por exemplo, a polis foi subdividida em unidades
sociopolíticas denominadas demos; em Roma, em tribus.
Quem nascesse num demos ou numa tribus, independentemente de sua situação
econômica, tinha assegurado o direito de participar das decisões da cidade. No
caso de Atenas, todos os naturais do demos tinham
o direito de participar diretamente do poder, donde o regime ser uma democracia. Em Roma, os não proprietários ou
os pobres formavam a plebe, que
tinha o direito de eleger um representante – o tribuno da plebe – para defender
e garantir os interesses plebeus junto aos interesses e privilégios dos que
participavam diretamente do poder, os patrícios, que constituíam o populus romanus. O regime político romano
era, assim, uma oligarquia.
Diante do poder despótico,
gregos e romanos inventaram o poder político porque:
– Separaram a
autoridade pessoal privada do chefe de família – senhorio patriarcal e
patrimonial – e o poder impessoal público, pertencente à coletividade;
separaram privado e público e impediram a identificação do poder político com a
pessoa do governante. Os postos de governo eram preenchidos por eleições entre
os cidadãos, de modo que o poder deixou de ser hereditário;
– Separaram
autoridade militar e poder civil, subordinando a primeira ao segundo. Isso não
significa que em certos casos, como em Esparta e Roma, o poder político não
fosse também um poder militar, mas sim que as missões militares deviam ser,
primeiro, discutidas e aprovadas pela autoridade política e só depois
realizadas. Os chefes militares não eram vitalícios nem seus cargos eram
hereditários, mas eram eleitos periodicamente pelas assembleias dos cidadãos;
– Separaram autoridade
mágico-religiosa e poder temporal laico, impedindo a divinização dos
governantes. Isso não significa que o poder político deixasse de ter laços com
a autoridade religiosa – os oráculos, na Grécia, e os augúrios, em Roma, eram
respeitados firmemente pelo poder político. Significa, porém, que os dirigentes
desejavam a aprovação e a proteção dos deuses, sem que isso implicasse a divinização
dos governantes e a submissão da política à autoridade sacerdotal;
– Criaram
a ideia e a prática da lei como expressão de uma vontade coletiva e pública,
definidora dos direitos e deveres para todos os cidadãos, impedindo que fosse
confundida com a vontade pessoal de um governante. Ao criarem a lei e o
direito, afirmaram a diferença entre o poder político e todos os outros poderes
e autoridades existentes na sociedade, pois conferiram a uma instância
impessoal e coletiva o direito exclusivo ao uso da força para punir crimes,
reprimir revoltas e matar para vingar, em nome da coletividade, um delito
julgado intolerável por ela. Em outras palavras, retiraram dos indivíduos o
direito de fazer justiça com as próprias mãos e de vingar por si mesmos uma ofensa
ou um crime. O monopólio da força, da vingança e da violência passou para o
Estado, sob a lei e o direito;
– Criaram
instituições públicas para aplicação das leis e garantia dos direitos, isto é,
os tribunais e os magistrados;
– Criaram a
instituição do erário público ou do fundo público, isto é, dos bens e recursos
que pertencem à sociedade e são por ela administrados por meio de taxas,
impostos e tributos, impedindo a concentração da propriedade e da riqueza nas
mãos dos dirigentes;
– Criaram o
espaço político ou espaço público – a assembléia grega e o senado romano -, no
qual os que possuem direitos iguais de cidadania discutem suas opiniões,
defendem seus interesses, deliberam em conjunto e decidem por meio do voto,
podendo, também pelo voto, revogar uma decisão tomada. É esse o coração da
invenção política.
De fato, e como vimos, a
marca do poder despótico é o segredo, a deliberação e a decisão a portas
fechadas. A política, ao contrário, introduz a prática da publicidade, isto é,
a exigência de que a sociedade conheça as deliberações e participe da tomada de
decisão. Além disso, a existência do espaço público de discussão, deliberação e
decisão significa que a sociedade está aberta aos acontecimentos, que as ações
não foram fixadas de uma vez por todas por alguma vontade transcendente, que
erros de avaliação e de decisão podem ser corrigidos, que uma ação pode gerar
problemas novos, não previstos nem imaginados, que exigirão o aparecimento de
novas leis e novas instituições. Em outras palavras, gregos e romanos tornaram
a política inseparável do tempo e, como vimos no caso da ética, ligada à noção
de possível ou de possibilidade, isto é, a idéia de uma criação contínua da
realidade social.
A cidadania era
exclusiva dos homens adultos livres nascidos no território da Cidade. Além
disso, a diferença de classe social nunca era apagada, mesmo que os pobres
tivessem direitos políticos. Assim, para muitos cargos, o pré-requisito da
riqueza vigorava e havia mesmo atividades portadoras de prestígio que somente
os ricos podiam realizar. Era o caso, por exemplo, da liturgia
grega e do evergetismo romano,
isto é, de grandes doações em dinheiro à cidade para festas, construção de
templos e teatros, patrocínio de jogos esportivos, de trabalhos artísticos,
etc.
Referência Bibliográfica.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora
Ática, 2000. P. 483 – 486.